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I. 4. 3.

Contacto com novas modalidades audiovisuais





























O percurso feito por Ernesto de Sousa desde os seus primeiros contactos com o cinema, passando pelo aparentemente paradoxal interesse pela arte popular, revela uma abertura de espírito que nunca recusou novas atitudes perante a realidade artística e tecnológica. Em 1969, durante a sua participação no Iº Festival de Arte Colectiva 11 Giorni a Pejo que destacava a “grande importância ao audiovisual em modalidades diversas” (Guedes & Camecelha, 1987: 91), Ernesto de Sousa encontrou um universo de possibilidades onde as diferenças entre as várias disciplinas criativas baixavam as suas barreiras proporcionando novos lugares de experimentação. No seu vocabulário ficariam então fortalecidos alguns conceitos como “poesia visual” e “poesia fonética”, “happening”, “cinema underground”, “experiências com computador”, “envolvimentos”, “música electrónica”, ou “múltiplos”.44

Resultado deste percurso e do entusiasmo que caracterizava Ernesto de Sousa perante novas possibilades de criação, foram apresentadas, entre outras, as obras intermedia Nós Não Estamos Algures (1969), e Luis Vaz 73 (1975), a segunda em parceria com Jorge Peixinho. Em Janeiro de 1974 organiza com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (a partir de uma ideia de Robert Filliou45), o encontro Aniversário da Arte (Coimbra).46

Ernesto de Sousa é então uma entidade multifacetada, o ponto de partida para este objecto de estudo sem se tornar a figura central. Durante o período em que exerceu a sua actividade crítica e divulgadora, tocou alguns dos aspectos considerados essenciais para as movimentações experimentais pós 25 de Abril.

“...um trabalho sobre a comunicação; não sobre as coisas, mas sobre as relações entre as coisas, não sobre os objectos mas sobre os acontecimentos. As concepções de uma arte aberta, de uma arte-participação continuam nos nossos dias as descobertas dadaístas. [...] Factor de desintegração, a obra de arte verdadeiramente moderna contém em si a sua própria destruição.” (Sousa, 1998: 75)

Analisando os textos de Ernesto de Sousa somos constantemente confrontados com um conjunto de referências, que demonstram a avidez com que procurava as respostas nas palavras de outros autores. Quando escreve sobre a desmaterialização da arte invoca Hegel (Sousa, 199: 27), se o tema entra no campo da antropologia já tem conhecimento dos estudos de Claude Lévi-Strauss (Sousa, 1987: 38). Nas palavras de outros autores (citação de Monteiro na página 17 deste trabalho), é possível atribuir a Ernesto de Sousa vários títulos sem que isso comprometa a validade da sua obra; talvez tenha sido o seu lado de artista plástico que contribuiu definitivamente para a experimentação cinematográfica, explicando a recepção pouco entusiástica de Dom Roberto pelos realizadores que protagonizariam o novo cinema português.

A importância de Ernesto de Sousa durante os anos de 1970 é sublinhada pela ponte que faz entre os centros de criação artística internacional e a arte portuguesa. É este papel de contaminador que estimula o grupo de artistas inseridos na Alternativa Zero, e é nessa altura que a arte portuguesa entra finalmente em uníssono diálogo com a europa vanguardista47.

O programa de intercâmbio levado a cabo por Ernesto de Sousa é comparável àquele que, como vamos ver mais à frente, E. M. de Melo e Castro levou a cabo com os poetas experimentais brasileiros. É portanto mais do que justo que o papel crítico e curatorial de Ernesto de Sousa, ele próprio assumindo também o papel de artista com regularidade, seja essencial como ponto de encontro na pesquisa de artistas contemporâneos que propuseram nas suas acções uma atitude interdisciplinar – os resultados eram então definidos como mixed-media48. Acções de Jorge Peixinho, E. M. de Melo e Castro, Salette Tavares, Ana Hatherly, António Palolo, Grupo ADAC, Júlio Bragança com Lídia Cabral e Pedro Cabral, entre outros, demonstraram uma combinação de valores entre as disciplinas criativas (música; escultura; pintura; poesia). Combinação essa que noutras épocas da história da arte, foi fundamental para a evolução artística, provocando uma transferência de propriedades que dificilmente seria possível ao manter um programa clássico centrado na representação da natureza.49

O conjunto de nomes reunido na Alternativa Zero possibilitou uma pesquisa mais assertiva do caso português e o entusiasmo que o organizador Ernesto de Sousa manteve pelo movimento Fluxus, bem como a relação próxima mantida com algumas das personalidades representativas desse movimento (Joseph Beuys; Robert Filliou; Wolf Vostell), foram pontos essenciais na evolução das artes em Portugal após o 25 de Abril – nomes como o de E. M. de Melo e Castro, Rui Mário Gonçalves, Rocha de Sousa, Egídio Álvaro50 e José Augusto França permitiram uma compreensão crítica  mais apurada do panorama nacional durante a década de 1970 e respectiva relação com as propostas internacionais.

Através de uma figura como a de Ernesto de Sousa foi possível actualizar aquele panorama, colocar Portugal nas rotas criativas internacionais e promover um programa contemporâneo repleto de experimentação.

Desde 1992, o seu nome é usado para a BES (Bolsa Ernesto de Sousa), projecto de incentivo à arte experimental intermédia que já premiou criadores a considerar para este estudo tais como: Rafael Toral (1994), Paulo Raposo (1996), André Gonçalves (2005).51

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44            A jornalista Maria Antónia Palla, que acompanhou Ernesto de Sousa na viagem a Itália, documentou num artigo o ambiente que ali se vivia - publicado no O Século Ilustrado, nº 1657, 1969/10/04. Disponível no sítio da internet dedicado a Ernesto de Sousa com o título Umas Calças em Troca de um Desenho (Pejo).

45            Francês, membro importante do movimento FLUXUS com quem Ernesto de Sousa manteve contacto desde meados dos anos de 1960. 

46            Para uma análise mais extensa acerca destas acções intermédia de Ernesto de Sousa consultar o catálogo da exposição Ernesto de Sousa, Revolution My Body, Fundação Calouste Gulbenkian, CAM-JAP, Junho 1998.

47            De notar que Ernesto de Sousa tinha algumas reservas em usar o termo “vanguarda”, referindo que, muitas vezes, a retaguarda tem tanta importância quanto a linha da frente. (1998: pág. 24)

48            Ver capítulo com o título Mixed-Media no livro Ernesto de Sousa Ser Moderno em Portugal  (pág. 269).

48            Ver por exemplo The Sound of Painting – Music in Modern Art, de Karin v. Maur, ou O Universo dos Sons nas Artes Plásticas de Ana Paula Almeida.

50            Egídio Álvaro é, na crítica portuguesa, outro caso particular que merece a devida atenção. Nas palavras de Ana Luísa Barão (2009: 1), "o carácter multidisciplinar da performance como plataforma de cruzamento de diferentes formas de expressão foi um dos vectores das propostas expositivas de Egídio Álvaro durante este período, envolvendo campos como a música, a dança ou a poesia visual." Para mais informação consultar artigo da autora em: http://performa.web.ua.pt/pdf/actas2009/05_Ana_Luisa_Barão.pdf

51            Rafel Toral mantém uma actividade regular e é representado por várias editoras discográficas internacionais (Touch, no Reino Unido; Moikai, nos Estados Unidos; Staubgold e Tomlab na Alemanha). Paulo Raposo tem a sua própria editora (Sirr), onde editou entre muitos outros, trabalhos do artista inglês Janek Schaefer. André Gonçalves desenvolve neste momento uma série de instrumentos electrónicos disponíveis no seu sítio da internet (www.addacsystem.com).

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I. 5.

Alternativa Zero: a exposição das possibilidades